#36
Nossa percepção de valores morais objetivos
Caro Dr. Craig:
Em um de seus artigos (“The Indispensability of Theological Meta-Ethical Foundations for Morality” [A indispensabilidade de fundamentos teológicos metaéticos para a moralidade]), o senhor alega que a existência de moralidade objetiva logicamente leva à conclusão de que Deus existe. Embora o argumento pareça muito forte, não está totalmente claro para mim.
No artigo, o senhor reivindica o seguinte:
Dizer que existem valores morais objetivos é afirmar que algo é certo ou errado a despeito de alguém acreditar ou não que seja. É dizer, por exemplo, que o antissemitismo nazista era moralmente errado, apesar de os nazistas que levaram a cabo o Holocausto acharem que era bom; e ainda continuaria a ser errado mesmo que os nazistas tivessem vencido a Segunda Guerra Mundial e conseguido ocasionar um extermínio, ou mesmo que tivessem feito lavagem cerebral em quem discordasse deles.
Todavia, mais adiante, o senhor faz a seguintes alegações.
Algo poderia ser mais óbvio do que o fato de valores morais objetivos existirem?
O fato é que realmente apreendemos valores objetivos, e todos temos consciência disso. Ações como estupro, tortura, abuso infantil e brutalidade não são apenas um comportamento social inaceitável — são abominações morais.
Primeiro, entendo que, se valores morais objetivos forem regras do que é certo e errado a despeito de quem acredite ou não que assim sejam, então as atrocidades nazistas eram moralmente erradas apesar de os nazistas acharem que eram boas. Assim, como pode o senhor dizer que “apreendemos valores objetivos, e todos temos consciência disso”? Como é possível admitir que “todos os conhecemos” visto que os nazistas, além de não os conhecerem, destruíram ou fizeram lavagem cerebral em todos quantos discordavam deles?
Segundo, se realmente apreendemos valores objetivos, e todos temos consciência disso, como podemos ter certeza de que a evolução não tem feito essa apreensão parecer para nós que esses valores são objetivos? Por exemplo, a maioria das pessoas vê uma jovem modelo como uma pessoa mais bonita do que uma anciã. Por que isso? Uma razão provável é que a jovem está no auge de sua aptidão reprodutiva. A aparência dela (fator de aproximação) se associa à sua aptidão reprodutiva (fator de finalidade) ao mesmo tempo em que nosso reconhecimento de beleza evolui. Reagimos à beleza, mas é a aptidão reprodutiva subjacente que dirige a evolução. Da mesma maneira, nossos valores morais (fator de aproximação) poderiam estar associados à aptidão reprodutiva do nosso grupo (fator de finalidade) à medida que evolui nosso reconhecimento de valores morais. Reagimos à moralidade, mas é a aptidão reprodutiva subjacente que dirige a evolução. Não consigo ver como é possível reconhecer de algum modo a moralidade como objetiva se nossas percepções têm sido coloridas pela associação inevitável entre os fatores evolutivos de aproximação e finalidade
O artigo que você cita, Carmine, foi originalmente um trabalho que apresentei na reunião da Academia Americana de Religião [AAR]. Assim, com respeito à sua primeira pergunta, minha frase “todos temos consciência disso” tinha em vista incluir meus ouvintes, e de modo algum pretendia incluir um nazista imaginário. Além disso, uma vez que há sem dúvida alguns sujeitos na AAR que adotam o relativismo de forma velada, usou-se esse recurso retórico com a intenção de provocar a audiência. É como se eu dissesse: “Todos sabemos que devemos nos proteger do terrorismo” — embora os terroristas mesmos discordassem dessa declaração!
Na verdade, porém, eu não acho que os nazistas discordariam da declaração de que há valores morais objetivos. Eles apenas discordariam sobre quais seriam esses valores. Essa era a ideia da citação que li a respeito do livro de Peter Haas, Morality after Auschwitz [A moralidade depois de Auschwitz]:
[...] longe de desdenharem da ética, os perpetradores agiram em total conformidade com uma ética que sustentava que, por mais difícil e desagradável que a tarefa pudesse ser, o extermínio maciço de judeus e ciganos era plenamente justificável [...] o Holocausto, como esforço sustentado, só foi possível porque vigorava uma nova ética que não definia como erradas a prisão e a deportação de judeus; na verdade, considerava tais ações como eticamente toleráveis e absolutamente boas.
Precisamente de acordo com o argumento de Haas, os nazistas não eram relativistas morais nem niilistas, pelo contrário, eram objetivistas que tinha um sistema de valores diferente de nós que enxergamos todas as pessoas como intrinsecamente valiosas. Algo parecido poderia ser dito hoje dos terroristas islâmicos.
Assim, embora haja niilistas por perto, acho que você precisa olhar com muita atenção para achá-los. As pessoas podem defender o relativismo exteriormente, mas você vai ver que, se fizer poucas perguntas mais profundas, como “Então, você acha que o abuso de crianças não é nada demais e moralmente válido?”, vai descobrir que elas acreditam de fato em valores morais objetivos.
Agora, a sua segunda pergunta — “se realmente apreendemos valores objetivos, e todos temos consciência disso, como podemos ter certeza de que a evolução não tem feito essa apreensão parecer para nós que esses valores são objetivos?” — está um tanto mal formulada. Afinal, se REALMENTE apreendemos valores objetivos, e todos TEMOS CONSCIÊNCIA disso, então se conclui automaticamente que sabemos que a evolução não está apenas nos fazendo acreditar que esses valores são objetivos. (Caso contrário nós realmente não os apreendemos nem temos consciência disso). Você poderia dizer: “Sim, mas como podemos ter certeza?”. Defender a certeza acerca dessas questões já é algo que não faz parte de meu argumento. Há pouquíssimos assuntos na vida dos quais temos certeza. Tudo o que importa é que, depois de refletirmos criteriosamente sobre a questão dos valores morais e de pesar as alternativas, podemos chegar à conclusão de que, sim, é provável que valores morais objetivos realmente existam.
O que você está realmente perguntando, segundo acho, é: “Por que eu deveria pensar que existem valores morais objetivos e deixar de cogitar a hipótese de que a evolução me fez acreditar na ilusão de que existem valores morais objetivos?”. E a resposta a essa pergunta é: “Porque eu claramente apreendo valores morais objetivos e não tenho nenhuma boa razão para negar aquilo que eu percebo claramente.”
Essa é a mesma resposta que damos ao cético que diz: “Quem lhe garante que você não é apenas um corpo jazendo na Matrix ou que tudo quanto você vê e sente é uma realidade virtual ilusória?”. Não temos como ficar de fora dos nossos cinco sentidos e provar que eles são verídicos. Antes, eu apreendo claramente um mundo composto de pessoas, árvores e casas em torno de mim e não tenho nenhuma razão justificável para duvidar daquilo que percebo com clareza. Está certo, é possível que eu seja um corpo na Matrix. Todavia, essas possibilidades são mínimas, e a mera possibilidade em si não serve de garantia para negar aquilo que capto com nitidez.
Isso não quer dizer que às vezes não possamos ser enganados por nossos sentidos nem que algumas pessoas não tenham deficiências que as impeçam de apreenderem o mundo acuradamente. O fato é que isso não justifica o ceticismo total acerca da veracidade dos meus sentidos. De modo análogo, nosso senso moral não é infalível, e, em algumas pessoas, como os nazistas, está terrivelmente distorcido e obscurecido. O que não é justificativa para o ceticismo moral generalizado.
Então, evidentemente, a alegação do opositor aqui será a de que temos evidência consistente de que a evolução tem, de fato, determinado nossas percepções morais e, portanto, nos tem dado uma boa razão para duvidar dos vereditos de nosso senso moral. Mas, será verdade? Surgem duas questões a respeito dessa alegação.
Em primeiro lugar, inferir que, em virtude de a evolução nos ter programado a acreditar em certos valores, esses valores não são objetivos é uma falácia lógica. Esse foi o argumento que apresentei em um artigo contra Michael Ruse, quando eu disse:
O raciocínio de Ruse é, na pior das hipóteses, um exemplo de falácia genética num livro escolar, e, na melhor das hipóteses, só prova que a nossa percepção subjetiva de valores morais é fruto da evolução. Mas, se os valores morais forem descobertos gradualmente, não inventados, então essa apreensão gradual e falível do universo moral mina a realidade objetiva desse âmbito, tanto quanto a nossa percepção gradual e falível do mundo físico mina a objetividade desse outro âmbito.
A falácia genética está envolvida sempre que alguém procura invalidar uma visão explicando como tal visão se originou ou passou a ser adotada. As pessoas cometem essa falácia, por exemplo, quando rejeitam a sua crença na democracia dizendo: “Você só acredita nela porque nasceu numa sociedade democrática.” Essa pode ser, de fato, a razão por que você acredita num governo democrático, mas isso por si só não serve de nada para provar que a sua crença é falsa. (Compare: “Você crê que a terra é redonda só porque nasceu numa era científica!”. Isso torna a sua crença falsa?)
Seu exemplo da beleza como valor estético é uma ilustração perfeita do meu argumento. Suponhamos que, para fins de argumentação, a evolução programou os homens para enxergarem as mulheres jovens como mais bonitas do que as mulheres idosas por causa da vantagem seletiva para a espécie de acasalar com mulheres mais jovens. Será que isso serve de algum modo para provar que as mulheres mais jovens não são realmente mais bonitas (fisicamente) que as mulheres idosas, que não existe diferença objetiva entre beleza e feiura? Obviamente não! Valores estéticos objetivos podem existir a despeito de como passamos a apreendê-los.
Ora, pode ser que você diga: “Tudo bem. Vejo que valores morais objetivos podem existir mesmo que sejamos programados pela evolução para acreditar neles. Mas, ainda assim, por que eu deveria pensar que eles são objetivos, dado o histórico evolutivo?”. A resposta é: “Porque você os apreende claramente, e o histórico evolutivo lhe dá razão para duvidar do seu senso moral SOMENTE SE o naturalismo (ateísmo) for verdadeiro.” A objeção incorre em petição de princípio por pressupor que o naturalismo é verdadeiro. Concordo que, se Deus não existe, então nossa experiência moral é plausivelmente ilusória. Na verdade, foi o que eu disse em minha defesa da premissa (1) do argumento moral:
1. Se Deus não existe, valores morais objetivos não existem.
Mas por que achar que o naturalismo é verdadeiro? Para minar a garantia que nossa vivência moral infunde em nossas crenças morais é preciso fazer muito mais do que continuar a defender que o naturalismo é verdadeiro. Na ausência de algum argumento a favor do naturalismo, estou totalmente no gozo de meus direitos racionais para aferrar-me ao meu senso moral e aceitar a objetividade do âmbito moral. A verdadeira dificuldade, portanto, não é a evolução, mas o naturalismo.
Em segundo lugar, não há nenhuma evidência sólida de que a nossa percepção de valores morais e estéticos foi programada pela evolução. Os darwinistas são extremamente imaginativos e criativos para inventarem o que se apelidou de histórias “exatamente assim” com a finalidade de explicar, através da evolução, as coisas para que não existe evidência empírica. Na verdade, essas histórias são interminavelmente adaptáveis, de sorte que se tornam quase irrefutáveis e, por isso, não falsificáveis.
Considero que seu argumento sobre por que achamos as mulheres jovens mais bonitas (fisicamente) do que as mulheres idosas seja uma redução ao absurdo dessa abordagem. Por que cargas d’água eu deveria acreditar que a razão para eu achar que Claudia Schiffer é mais bonita que Madeleine Albright é porque aquela, e não esta, está mais perto do seu ápice de aptidão reprodutiva? Isso me parece absurdo. Que evidência há para assegurar conjectura tão absurda?
Na verdade, será que a evidência não aponta na direção contrária? Se é a aptidão reprodutiva que determina a nossa avaliação de beleza, então por que uma jovem com nariz enorme e lábio leporino não pareceria tão bonita para mim quanto uma modelo? As mulheres jovens consideradas feias são exatamente tão férteis quanto as bonitas. Portanto, que vantagem seletiva há em ser atraído por mulheres bonitas e não apenas por mulheres mais jovens? Ou, ainda, não é estranho que você, uma mulher, concorde comigo que a modelo jovem é mais bonita que a anciã, visto que você como mulher não pode obter nenhuma vantagem seletiva de tal juízo estético? Ainda que a evolução lhe programasse para achar que homens jovens são mais bonitos do que homens idosos, por que razão você também acharia a jovem modelo mais bonita (fisicamente) do que a mulher idosa? Sempre admiramos um cavalo árabe particularmente bonito ou um animal campeão numa exposição de cães. Como tais juízos podem ser explicados plausivelmente em razão da programação evolutiva, uma vez que julgamentos diferenciados de beleza em outros animais não têm para nós absolutamente nenhuma vantagem seletiva?
Tenho certeza de que, em razão da engenhosidade deles para inventarem histórias “exatamente assim”, os darwinistas podem descobrir como apresentar razões convincentes para tais anomalias. Mas por que acreditar nessas histórias? Deveríamos exigir alguma razão bastante forte para acharmos que a evolução tem, de fato, determinado nossos juízos morais e estéticos. Mas tal evidência não existe. Antes, suspeito que essas histórias “exatamente assim” são aceitas por tantas pessoas porque, com base na hipótese naturalista, parece natural supor que nossos gostos foram determinados pela vantagem seletiva deles mesmos. Todavia, surge, então, novamente a pergunta: por que devemos achar que o naturalismo é verdadeiro?
William Lane Craig
Originalmente publicado como: “Our Grasp of Objective Moral Values”. Texto disponível na íntegra em: http://www.reasonablefaith.org/our-grasp-of-objective-moral-values. Traduzido por Marcos Vasconcelos. Revisado por Mariú M. M. Lope
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