O Grande Abismo
Prefácio a edição original.
William Blake escreveu o livro Matrimônio do Céu e do inferno. Se escrevi sobre a separação dos dois, não é porque me julgue um concorrente digno de tão grande gênio, nem mesmo porque me sinta sabedor absoluto do que Blake pretendia. No entanto, num sentido ou noutro, a tentativa de fazer esse casamento é constante. Essa tentativa baseia-se na crença de que a realidade jamais se apresenta com “issos ou aquilos” plenamente inevitáveis, mas que, garantidas a capacidade e a paciência e (acima de tudo) tempo suficiente, sempre se dá um jeito de abraçar ambas as alternativas. O mero desenvolvimento, ajuste ou refinamento, transformará, de algum modo, o mal em bem, sem sermos chamados uma para final e total de qualquer coisa que gostaríamos de reter. Essa crença, para mim, é um erro desastroso. Não podemos levar todas as bagagens conosco numa viagem, e é possível que até mesmo nossa mão ou nosso olho direito estejam entre as coisas que tenhamos de deixar para trás. Não fazemos parte de um mundo onde todos os caminhos são raios de um mesmo círculo e onde todos eles, se percorridos em um tempo suficiente, gradualmente se vão aproximando até que se encontrem no centro; ao contrário, vivemos num mundo em que toda estrada, depois de alguns quilômetros, divide-se em duas, e cada uma dessas em mais duas, e a cada bifurcação você é obrigado a tomar uma decisão. Mesmo em seu aspecto biológico, a vida não é como um rio; ela é mais como uma árvore. Não se move na direção da unidade, mas na direção oposta, e as criaturas separam-se cada vez mais umas das outras, à medida que se desenvolvem em perfeição. O bem, à medida que se aprimora, torna-se cada vez mais diferente, não somente do mal, mas também de outro bem.
Eu não creio que todos os que escolhem caminhos errados perecem; mas seu resgate consiste em serem colocados de volta no caminho certo. Uma soma errada pode ser corrigida: mas apenas fazendo o caminho de volta até você encontrar o erro e continuando a partir desse ponto, nunca simplesmente prosseguindo. O mal pode ser desfeito, mas não pode “desenvolver-se” em bem. O tempo não cura. O encanto deve ser desfeito pouco a pouco, “com palavras murmuradas de trás para a frente com poder de cindir”, ou então não será desfeito. Ainda será uma coisa ou outra. Se insistirmos em manter o Inferno (ou mesmo a terra), não veremos o Céu; se aceitarmos o Céu, não conseguiremos reter nem mesmo a menor e mais íntima lembrança do Inferno. Acredito, na verdade, que qualquer homem que alcançar o Céu descobrirá que aquilo a que renunciou (mesmo se tivesse arrancado seu olho direito) não foi perdido; que a essência do que realmente estava buscando, mesmo no desejo mais corrompido, estará ali, muito além das suas expectativas, esperando por ele nos “Lugares Altos”. Nesse sentido, será verdade para aqueles que completarem a jornada (e para ninguém mais) que o bem é tudo e que o Céu está em toda parte. Todavia nós, deste lado da estrada, não devemos tentar antecipar essa visão retrospectiva; se o fizermos, é provável que sejamos enredados pela falsa e desastrosa idéia de que tudo é bom e de que qualquer lugar é o Céu.
Mas e a Terra? – você perguntará. Imagino que, no fim, ninguém irá considerá-la um lugar muito diferente. Também acredito que, se a terra for escolhida em vez do Céu, acabará tendo sido, todo o tempo, apenas uma região no Inferno; mas, se ela estiver subordinada ao Céu, terá sido desde o início uma parte do próprio Céu.
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