segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A fé cristã como irracional?


Como vimos, a análise que Dawkins faz da fé é altamente simplista e não leva em conta o modo como as palavras são usadas em contextos religiosos. Ludwig Wittgenstein levantou o ponto incontestável de que as palavras são usadas com significados deferentes em contextos deferentes. Para Wittgenstein, a Lebensform ("forma de vida") dentro da qual uma palavra é usada possui importância decisiva para estabelecer o seu significado. Conforme Wittgenstein mostrou, precisamente a mesma palavra pode ser usada num grande número de contextos, com significados diferentes em cada um.





Um modo de contornar esse problema poderia ser inventar um vocabulário totalmente novo, no qual o significado de cada palavra fosse definido de modo firme e inequívoco. Mas essa não é uma opção real. As línguas são entidades vivas e não não podem ser forçadas a se comportar de um modo artificial.


Uma abordagem perfeitamente aceitável, de acordo com Wittgenstein, é se dar ao trabalho de definir o sentido específico pelo qual uma palavra deveria ser entendida, para se evitar confusão com os seus muitos outros sentidos. Isso envolve um estudo cuidadoso de suas associações e uso na "forma de vida" à qual ela se relaciona. Em vez de assumir cega e ingenuamente que uma palavra que significa uma coisa numa dada situação signifique precisamente o mesmo em outra, é universalmente aceito que precisamos tomar muito cuidado ao estabelecer como palavras são usadas em cada contexto, e os significados que carregam.


Esse tópico deveria ser familiar a qualquer cientista competente, bastante acostumado a usar na vida cotidiana as palavras num certo sentido e, num sentido mais preciso, restrito, dentro de uma cultura de laboratório. Trabalhei durante vários anos, no final da década de 1970, no grupo de pesquisa do professor Sir George Radda, no departamento de bioquímica da Universidade de Oxford. Todas as manhãs, às onze horas, reuníamo-nos para um café em torno de um antigo fogão. Quando alguém pedia ao vizinho "passe o açúcar", o que a pessoa pedia de fato era a substância química conhecida como "sacarose" ou, mais precisamente: [2-0-(alpha-D-glucopyranosyl)-beta-D-fructofuranoside]. Já nas ciências naturais, o termo "açucar" representa uma classe muito ampla de substâncias de açucar (sacarose), leite (lactose) e várias frutas (frutose). Todos variando enormemente em graus de "doçura". Por exemplo, a lactose tem apenas 16% da doçura da sacarose.

O "açucar" do mundo cotidiano é, portanto, uma forma de fato muito específica da categoria científica mais geral do açúcar - especificamente, um 1,2'-glicosídeo. Essa simples diferença de vocabulário pode causar imensa confusão, especialmente em relação aos problemas de saúde que surgem do consumo da sacarose. Poderia até levar alguém a colocar lactose em seu café. Precisaríamos de uma quantidade seis vezes maior de lactose em nosso café para alcançar o mesmo grau de doçura da sacarose. Todos que estavam reunidos para o café sabiam que as palavras estavam sendo usadas com significados diferentes em contextos diferentes, e percebiam a distinção entre eles.

Ora, não há um problema aqui. A pessoa se acostuma a viver em mundos diferentes e ser sensível às suas sutis diferenças lingüísticas. Ela percebe que as palavras significam coisas diferentes dentro de comunidades diferentes. Os que estão de fora podem considerar um problema essas diferenças sutis, e muitas vezes não entender por que as diferentes linguagens de diferentes comunidades existem. Não se trata de nenhuma questão de desonestidade, como se alguém estivesse tentando enganar as pessoas usando essas formas específicas de linguagem. Elas evoluem naturalmente, em resposta às necessidades profissionais e diferentes tarefas das comunidades envolvidas. É uma questão de simplesmente se tornar bilíngue, e sensível aos diferentes significados das palavras nos diversos contextos. Significa estar preparado para perguntar às pessoas: "O que você quer dizer quando usa esta palavra?" e preparar-se para aceitar que o uso que elas fazem daquela palavra pode não ser idêntico ao uso que você faz da palavra - o que não significa que as pessoas estejam erradas, e você certo. Caso contrário, a comunicação através das fronteiras disciplinares se tornaria impossível. Os cientistas usam a linguagem de um modo que difere do uso comum; assim também fazem os teólogos. A primeira fase em qualquer tentativa de se engajar numa disciplina é entender o uso que ela faz da linguagem.

Dawkins, de forma correta, fez uma crítica mordaz à filósofa Mary Midgley por ela criticar a sua hipótese do "gene egoísta" sem qualquer consciência de como os cientistas usavam a linguagem. As palavras de Dawkins merecem ser citadas:

"Midgley] parece não entender o uso que a biologia ou os biólogos
fazem da linguagem. Sem dúvida minha ignorância ficaria da mesma maneira óbvia se me lançasse precipitadamente ao campo em que ela é perita, mas então eu adotaria um tom mais modesto. Como ambos estamos em meu terreno, é difícil não considerar isso uma grosseria."

Mas, esse não é o mesmo Richard Dawkins que, nada sabendo sobre teologia cristã, se lança precipitadamente no campo, e diz aos teólogos o que eles realmente querem dizer ao usarem sua própria linguagem? Ou que eles de fato querem dizer "confiança cega" quando falam de "fé?" Há uma total falha por parte de Dawkins até mesmo para começar a entender, na linguagem da teologia cristã, o que ela significa. Na verdade, é muito difícil considerar com algum grau de seriedade os julgamentos que faz das alegadas falhas na linguagem teológica.

Vamos tentar ser mais diretos neste momento. Como um teólogo histórico profissional, não hesito em afirmar que a tradição cristã clássica sempre valorizou a racionalidade, não defendendo que a fé envolva o completo abandono da razão ou a crença contra a evidência. Na verdade, a tradição cristã é tão consistente nessa questão que é difícil entender de onde Dawkins tirou a idéia de fé como "confiança cega". Até mesmo uma leitura superficial das obras dos grandes filósofos cristãos como Richard Swinburne (Universidade de Oxford), Nicolas Wolterstorff (Universidade de Yale), e Alvin Plantinga (Universidade de Notre Dame) revelaria um fervoroso compromisso com a questão de como alguém poderia fazer declarações "seguras" ou "coerentes" a respeito de Deus. Não existe a questão confiança cega. A questão é como se poderia fazer um juizo embasado, racional e defensável da questão sobre Deus, quando a evidência é tão ambivalente.

Ora, talvez Dawkins esteja tão ocupado escrevendo livros contra religião que não tenha tempo de ler as obras de religião. Nas raras ocasiões em que cita os teólogos clássicos, tende a fazê-lo de segunda mão, muitas vezes com resultados assustadores. por exemplo, Dawkins elege o escritor cristão Tertuliano (c. 160 - c. 225) para fazer um comentário particularmente acerbo, por conta de duas citações de seus escritos: "É certo porque é impossível" e "sem dúvida creio porque é absurdo". Dawkins tem pouco tempo para tal tipo de tolice. "Esse é o caminho da loucura".

Na visão dele, a abordagem de Tertuliano - como comprovada por essas citações isoladas - é exatamente como a da Rainha Branca em Através do Espelho, de Lewis Carroll, que teimava em acreditar em seis coisas impossíveis antes do café da manhã. Como essa referência desprezível a Tertuliano é uma das poucas ocasiões em que Dawkins emprega representantes sérios da tradição teológica cristã, proponho tomar seus comentários com seriedade e verificar para onde nos levam. Eles poderiam nos dizer algo sobre Tertuliano, até mesmo sobre o cristianismo, ou, então, mais uma vez, sobre o próprio Dawkins.

Tertuliano nunca escreveu as palavras "sem dúvida creio porque é absurdo". Essa citação deturpada é muitas vezes atribuída a ele em textos menores. Mas é uma atribuição indevida e assim tem sido tratada por muitos. Portanto, no mínimo podemos pressupor com certa razão que Dawkins não leu diretamente Tertuliano, mas tirou essa citação de uma duvidosa fonte secundária. Isso poderia nos dizer algo sobre quão seguros são seus julgamentos sobre estas questões.

No entanto, Tertuliano escreveu as palavras "é certo porque é impossível". Porém o contexto deixa claro que, em nenhum momento, está argumentando em defesa de uma "fé cega". Eis a passagem completa, primeiro em latim:

Crucifixus est dei filius; non pudet, quia pudent est.
Et mortuus est dei filius; credibile prorsus est, quia ineptum est.
Et sepultus resurrexit; certum est, quia impossibile.

O Filho de Deus foi crucificado: não me envergonho, porque é vergonhoso.

O Filho de Deus morreu: á absolutamente crível, porque é torpe.
Ele foi sepultado, e se levantou novamente: é certo, porque é impossível.

Nessa passagem, ao contrário do que Dawkins acredita, Tertuliano não está discutindo a relação entre fé e razão, ou a base evidencial do cristianismo. Lendo a passagem no contexto, imediatamente é eliminada qualquer idéia desse tipo. Sabe-se desde 1916 que, nessa passagem, Tertuliano está lidando com algumas idéias de Aristóteles. James Moffat, que demonstrou a relação, nota o aparente absurdo das palavras de Tertuliano:

Este é um dos paradoxos mais desafiantes em Tertuliano, uma das sentenças vivas, reveladoras, nas quais não hesita em destruir o sentido das palavras para fazer a sua observação. Ele exagera deliberadamente para chamar a atenção para a verdade que quer transmitir. A frase é muitas vezes citada de forma errônea, e muito frequentemente é considerada como cristalização de um preconceito irracional em sua mente, como se ele desprezasse e desdenhasse a inteligência na religião - uma suposição que não sobreviverá a uma comparação em primeira mão com os escritos do pai africano.

A questão é que o evangelho cristão é, naquele momento, profundamente contracultural e contra-intuitivo. Assim, por que alguém iria querer ajustá-lo, quando é tão obviamente improvável, a tais padrões de sabedoria? Tertuliano, então, parodia uma passagem da Retórica de Aristóteles, a qual argumenta que uma afirmação extraordinária poderia muito bem ser verdadeira, precisamente pelo fato de ser tão fora do comum. O que com certeza devia ser uma piada retórica para os que conheciam Aristóteles.

Mas esse é apenas um de toda uma série de argumentos que Tertuliano apresenta nesse momento, e é grotescamente inexato determinar toda a sua atitude em relação à racionalidade com base em uma única e isolada frase. A atitude de Tertuliano a respeito da razão está definitivamente resumida na seguinte citação:

Porque a razão é uma propriedade de Deus, visto que não existe nada que Deus, o criador de todas as coisas, não previu, organizou e determinou através da razão. Além disso, não existe nada que Deus não deseje que seja investigado e entendido pela razão.

No final das contas o que importa é que não existe limite para o que pode ser "investigado e entendido pela razão". O mesmo Deus que criou a humanidade com a capacidade de raciocinar espera que a razão possa ser usada na investigação e representação do mundo. Sendo que a maioria dos teólogos cristãos faz hoje, como fez no passado. Com certeza há exceções. Mas Dawkins parece preferir tratar as exceções como se fossem a regra, não oferecendo qualquer evidência em defesa dessa conclusão altamente questionável.

As visões de Dawkins sobre a natureza da fé deveriam muito bem ser consideradas como um embaraço a qualquer um envolvido com a precisão acadêmica. Algo que não contribui em nada para a sua credibilidade, em especial suas ocasionais declarações em tom de sermão, por exemplo: "Como amante da verdade, suspeito de crenças defendidas com vigor que não sejam sustentadas pela evidência". Então, vamos apenas estipular um limite para esse nonsense e passar para algo mais interessante.


O Deus de Dawkins - Alister McGrath - págs.121 a 127


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